Corujas e morcegos

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Asas de fruto do mar



Seu Juca Sem Fio *

Quem é de andar... anda,
anda com ou sem as pernas,
que o único entrave é o talho nas
rneas d’alma, mal querência do fio
do nefando horizonte comum.

Por isso, poucos andam, de fato,
embora muitos pensem que sim,
que andam, que caminham, que vão
rumo aos rumos não-circulares
vedados a eles, pobre diabos que
rodam apenas a passo mecânico,
ponteiros de relógio que são.

Ah, eles nem sabem onde pisam,
mas preferem o cimento ao barro
e o asfalto ao paralelepípedo.
Não sabem que qualquer chão é caminho
de seda, tramada pelos raios do sol;
de veludo, urdido pelo luar, pelos estelares;
ou de algodão, das nuvens quando pousam.

Quem anda mesmo encontra o chão
e, no chão, até o que é dos ares e das águas.
Como essa moça que outro dia eu vi menina,
a saltitar pelas areias do céu de Bangu
e a me gritar, bem lá da esquina
de Vega com Aldebarã: – Ei, seu moço,
aceita umas asas de fruto do mar?

Eu sorri, e lá veio ela atrás de mim,
a me chover, por mais de légua, légua e meia,
uma garoa luminosa infinita de conchinhas
que catava com os olhos alumbrados
e pelo coração cuspia neste mundo.

\ô/

  • * Seu Juca Sem Fio é um andarilho da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Este poema foi escrito especialmente para os 18 anos de Raissa Medeiros e publicado (não na íntegra, como agora aqui) no blog desinformação seletiva, em postagem que reuniu autores como António Cabrita, Ana Jácomo, Assis Freitas, Marcantonio, Jorge Pimenta, Betina Moraes, Cris de Souza, Rita Santana, Bípede Falante, Paulinho Saturnino, Ira Buscacio, Suzana Guimarães, Jenny Paulla, Pólen Radioativo, Patricia Gonçalves, Marcel Zanner ... e até Wilden Barreiro!  Foi um prazer e uma honra participar desta belíssima homenagem, luxuosamente editada e ilustrada por Tuca Zamagna e seus três asseclas. Confiram, aqui.
  •  

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Educação artística



Antônio Rebouças Falcão*

Sempre beber o vinho do copo vazio.
E observe as marés do mar ausente.
Sempre contemplar a lua no asfalto noturno.
E fume o silêncio das vozes distantes.
Sempre tomar do acaso o que ele não nos pode negar.
E goze a sombra que não se dá a ver.
Sempre abraçar a alma calada em desesperança.
E esteja em companhia da solidão mais constante.

Nunca costurar sua morte a quatro mãos.
Deixe com ela o que dela é.

\ô/

*O poeta atende no Dilema Paulistano. A ilustração é um detalhe do cabeçalho do blog, desenhado pelo próprio Antônio Falcão.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desaforismos - II


1/

Se o homem tivesse asas, seríamos todos canários, saíras, colibris... – exceto alguns milhares de abutres, os mesmos de sempre, predadores naturais dos nossos vôos, com ou sem asas.

\2

O grande amor da nossa vida só pode revelar-se, nítido e insofismável, a partir do instante em que de vez partimos.

3/

Esqueci o poema do Kavafis, mas sei que seus versos já estavam escritos em mim quando a primeira noite me chegou com suas promessas, com sua sedução irresistível, com a pulsação mais intensa e constante em toda a minha vida.

\4

A espécie humana ainda existe graças à pouca consciência ecológica das serpentes, dos escorpiões, dos crocodilos, dos vírus, das bactérias...

5/

O melhor amigo não é o que ouve as nossas palavras, mas o que respeita a nossa pontuação.

\6

Eu não sou só espinhos: sou pétalas também, certo? É insuportável essa discriminação contra nós, cactos.

7/

Você já imaginou juntar todo o dinheiro do mundo e fazer:

(...) uma montanha, a mais alta do planeta, que teria na base uma riqueza incomensurável e, no cume, uns trocadinhos?

(...) um oceano em que muitos poderiam se afogar sob aplauso (ou vaia) dos demais?

(...) a mais gloriosa fogueira de todos os tempos?

\8

Não perca o seu tempo comigo. Encontre o meu – e poderemos dividi-lo para multiplicá-lo.

\ô/
 
Mais Desaforismos, aqui.
 

domingo, 15 de maio de 2011

Perdedor de Sá




. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Comigo me desavim
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sá de Miranda

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Comigo me desavim,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sou posto em todo perigo;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Não posso viver comigo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nem posso fugir de mim.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com dor, da gente fugia,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Antes que esta assim crescesse:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Agora já fugiria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . De mim, se de mim pudesse.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Que meio espero ou que fim
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do vão trabalho que sigo,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pois que trago a mim comigo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tamanho imigo* de mim?

. . . \ò/ . \ó/

Francisco de Sá de Miranda – mormente por este poema e pelo soneto “O sol é grande” – é bem conhecido de todos que apreciam a literatura em língua portuguesa. Mas postá-lo aqui no blog era obrigatório, pois o poeta abriu-me horizontes novos e amplos desde que o li pela primeira vez, no final da adolescência. Não dei-lhe muita bola no primeiro momento, por julgar tratar-se apenas de mais um poetinha que gostava de Fernando Pessoa, como eu (ou eus). Só depois fiquei sabendo que o Sá vivera quatro séculos antes do Pessoa. E tal informação me estarreceu: um gajo falando do eu (ou eus) na época em que tema poético eram as grandes peripécias náuticas lusitanas, os bastidores da corte, os costumes bizarros do povaréu e, claro, o tal do amor? Depois, também, fiquei sabendo que este de Sá, reles poeta e professor, era irmão do de Sá VENCEDOR, o Mem, terceiro Governador-Geral do Brasil, cujo grande feito foi ter botado os franceses para correr (no colo dos Tamoio) e transferido para o Morro do Castelo a cidade maravilhosa fundada por seu sobrinho Estácio. Mem de Sá, aliás, assumiu o Governo-Geral do Brasil em janeiro 1558, três ou quatro meses antes (há controvérsias sobre a data) da morte do poeta. A Sá de Miranda, a poesia portuguesa deve a introdução de várias formas poéticas trazidas por ele da Itália, dentre elas o verso decassílabo, metro com que Camõe se consagraria  n’Os Lusíadas. Deve a arte portuguesa à Sá, ainda, a primeira crítica sistemática – e pública – ao dramaturgo e poeta Gil Vicente, e essa dívida é filha de uma outra, contraída e paga, com juros pesados, pelo próprio poeta, ao comprar um inimigo (ou *imigo, forma também usada na época) poderosíssimo. Os desgostos decorrentes dessa inimizade é que teriam levado Sá de Miranda a “exilar-se” no campo, deixando sua Pasárgada – ­Coimbra ­–, onde era amigo do rei (D. João III).

terça-feira, 10 de maio de 2011

mar da montanha


                                                                                         Seu Juca Sem Fio

como forma que não vira fórmula,
como a idéia esvoaçante que pousa,
como um sol infinito que se põe no bolso,
como doçura que nem depois de finda azeda,
como o belo que só envelhece ante olhos enrugados,
como flor que ceifada da planta rebrota na água,
como seixo que andarilha pelo leito dos rios:
contra a corrente, sem polimento, rumo
à descoberta do mar na montanha.

Deus



Para Aline Chaves . .

Eu vou ali
mas volto 
Vou ali mas
volto acolá

Sou sempre
sempre sim
sempre não

Deus que sou
e não sou de
mim em mim

\ô/

A ilustração é do artista plástico e designer Hélio Jesuíno (aqui).


quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Lei do Mocinho



O homem mandou matar
um outro homem.
O homem é o mocinho,
o outro é o bandido.
O homem é um monte
de homens armados,
o outro é o monte de
homens que, supõe-se,
teria mandado matar.
Por isso está armado,
ainda que não esteja
armado: sua arma é
sua alma desalmada.

Almas desalmadas,
reza a Constituição,
não têm direitos.
Nem de ser presas
e julgadas, nem de
ter seus restos físicos
sepultados pelos seus.
 Almas desalmadas
não carecem de tumba:
seus corpos devem ser
drasticamente lacrados
mesmo antes de morrer,
como reza a Constituição
dos bons, do mocinho.
 .

domingo, 1 de maio de 2011

Ela, às vezes eu



I

As horas, minha sombra
sempre diz com precisão.
Mas ouvidos só lhe dou
quando a piso por inteiro:
ao meio-dia em ponto.


II

Sombra de mim, és sobra
do outro que sempre sou
a cada passo que dou
no que de mim sossobra.


III

Fotografam-me de pé
e revelam-me no chão.
Enquadram-me sentado,
na foto eis-me no chão.
Deitado, sim, é que surjo
lógico, na horizontal,
embora justo embaixo

de mim que lá não estou.

Mas no espelho, a sós
comigo, sou onde estou,
ainda que seja ainda
minha maldita sombra
que no aço se estampa.

Somente em radiografias
saio sempre bem: revela-se
o exterior do meu próprio
eu, livre dessa sombria

víscera que me persegue.
.