Corujas e morcegos

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O que viveu meia hora



Ser*

Carlos Drummond de Andrade  .  .

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
Faz-se por si mesmo.

*Em Claro Enigma.

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Anotações do poeta
(ambas assinadas por extenso)

I

Meu filho Carlos Flavio nasceu às 4 horas e 15 minutos do dia 21 de Março de 1927, segunda-feira. Deus o proteja em toda a sua vida.

21­ - III – 27  --  às 4 e 35 da tarde.

II

Meu filho Carlos Flavio morreu às 4 horas e 45 minutos do dia 21 de Março de 1927, segunda-feira

21­ - III – 27  --  às 10 horas da noite.

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O que Viveu Meia Hora*

Carlos Drummond de Andrade  .  .

Nascer para não viver
só para ocupar
estrito espaço numerado
ao sol-e-chuva
que meticulosamente vai delindo
o número
enquanto o nome vai-se autocorroendo
na terra, nos arquivos
na mente volúvel ou cansada
até que um dia
trilhões de milênios antes do juízo final
não reste em qualquer átomo
nada de uma hipótese de existência.

*Em A Paixão Medida.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Ninguém


 
Seu Juca Sem Fio

O coração apagava cada verdade que vinha do mundo
porque as mãos colhiam sementes chocas para plantar estrelas.

Elefantes, carregava-os nas costas até virarem borboletas,
para oferecer aos pés lonjuras caudalosas de incertezas.

Do sexo, pendiam fieiras de risos, clarins e atabaques,
em desacato ao silêncio de morte que ao gozo sucedia.

Os olhos liam de trás para frente todas as palavras,
e eis que todos os sentidos chegavam sempre ao princípio.

O fim, a boca nunca o pronunciou nem haveria de provar:
esse lá merecia crédito com parte alguma de um ninguém?
.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Alma Van Gogh



Meus olhos, mais que as unhas,
precisam ser aparados regularmente,
porque o defunto que um dia serei
costuma tomar como suas
paisagens minhas que deixo,
levado pela emoção,
transbordar da vida.

Me faço vermes, então,
e devoro esse corpo inerte
que – junto com o meu próprio ­–
ladeiam-me a alma como orelhas.

Que ele exista desde já, se lhe apraz,
mas só por breves momentos:
enquanto vida houver,
minha alma será Van Gogh.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A dança dos tangarás



“Eu queria ser um avestruz/
Um monte de passarinhos”

Simone Guimarães

Tem coisa mais linda
que mulher feia
quando lambuza a gente
de desejo e paixão?

Essas deusas de unhas e asas
e estrelas bem aparadas
fazem de mim, esse avestruz
metido a fênix, uma revoada
de passarinhos multicoloridos.

Tangarás, incontáveis tangarás
disputando dentro de mim
a fêmea desgraciosa que vem
toda vez que eles, despidos
do preconceito de enfeitar-se,
dançam, dançam, dançam...
até que um deles conquiste
o pequeno útero que haverá
de tragá-lo inteiro, bem fundo,
até o coração da vida.