Corujas e morcegos

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Uma mulher

.



Uma mulher que seja
a voz e o sentido do mar
revolto que me envolve,
mesmo e principalmente
quando eu estiver só.

Uma mulher que saiba
cerzir a minha alma rota
com fogos de arrepio;
que creia, sem dúvidas,
na minha descrença;
que espere, que propicie
luz à minha desesperança.

Uma mulher sem adjetivos
para o que sinto e sou:
que me queira por inteiro,
sem jamais me comparar
a ninguém – nem mesmo
e mormente àquele que,
ontem ou até um segundo atrás,
me foi.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ela, às vezes eu

.


I

As horas, minha sombra
sempre diz com precisão.
Mas ouvidos só lhe dou
quando a piso por inteiro:
ao meio-dia em ponto.


II

Sombra de mim, és sobra
do outro que sempre sou
a cada passo que dou
no que de mim sossobra.


III

Fotografam-me de pé
e revelam-me no chão.
Enquadram-me sentado,
na foto eis-me no chão.
Deitado, sim, é que surjo
lógico, na horizontal,
embora justo embaixo

de mim que lá não estou.

Mas no espelho, a sós
comigo, sou onde estou,
ainda que seja ainda
minha maldita sombra
que no aço se estampa.

Somente em radiografias
saio sempre bem: 
é quando revela-se
o exterior do meu próprio eu
livre dessa sombria

víscera que me segue, à espera 
de outros corpos meus
para invadir e comandar.
 

terça-feira, 26 de junho de 2012

pássaros para sempre

  
. . . . . . . . . . . . meus pés descalços
. . . . . . . . . . . . já não rejeitam a lama frígida
. . . . . . . . . . . . que os enrugará cada dia mais
. . . . . . . . . . . . nem as pedras que os esfolarão
. . . . . . . . . . . . até que deles nada mais reste
. . . . . . . . . . . . no asfalto ardente que fritará suas almas (
. . . . . . . . . . . . sim, há pés com alma)

. . . . . . . . . . . . meus pés descalços apenas sonham
. . . . . . . . . . . . me sonhar de cabeça para baixo
. . . . . . . . . . . . eles nas nuvens, altíssimas nuvens
. . . . . . . . . . . . calçando sapatos que os ventos
. . . . . . . . . . . . para espantar a solidão tricotaram
. . . . . . . . . . . . com penas perdidas pelas aves migratórias,
. . . . . . . . . . . . generosas, distraídas, desapegadas
. . . . . . . . . . . . de toda dor que ficou para trás, bem para trás
. . . . . . . . . . . . de cada mínima pluma que um dia
. . . . . . . . . . . . haverá de passar, empassarada
. . . . . . . . . . . . no compasso compassivo dos passos
. . . . . . . . . . . . de meus pés, meros passageiros, alvos de leveza
. . . . . . . . . . . . pássaros para sempre
. . . . . . . . . . . . a teus pés, esses teus pés
. . . . . . . . . . . . caminhantes de aerovias no azul
. . . . . . . . . . . . infinito enquanto voas a meu lado

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Desanatomia



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Teu corpo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . na minha cama
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . não é o corpo que tens.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Teu corpo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . na minha alma
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . não é o corpo que toco.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meu corpo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre os teus braços
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre os teus seios
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre as tuas coxas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre os teus lábios
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre as tuas nádegas,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meu corpo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . dentro e fora de ti
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . é só o aríete e o arauto
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . dos descobrimentos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . do teu corpo em construção
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . na desconstrução de mim.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ave aves!



Seu Juca Sem Fio . . .

Não se passou um só dia nesta minha vida
andarilha
tão parca de grandes realizações,
mas quase infinita
(se não o for por inteiro, sabe-se lá...),
sem o cotidiano encantar-me... e muito!...
com os presentes ganhos:
dores fincadas bem fundo na alma
tanto quanto alumbramentos
por aves, com aves, sempre as aves,
que um avestruz como eu
só com elas e por elas se deixa tocar.

Um dia é um condor azul que me beija,
com toda a paixão latente pelos cumes do mundo,
e o coração me leva para plantar lá nas alturas:
e lhe sorrio e lhe sou grato;
outro dia pode ser um beija-flor
a vir pairar no ar que respiro
e sugar-me até o fim o néctar cultivado
às claras da flor da pele:
e lhe sorrio e lhe sou grato.

Ave aves! Sou-lhes todo gratidão...
e aflitiva e alucinada espera,
dê-se a isso o nome que se der:
carência, ansiedade, tédio, náusea, piti...
saudade, não! que a saudade, nas aves,
não é sequer uma pena... uma pluma... arrancada,
mas parte do ser ave, a mais pura e permanente,
a mesma que muitos humanos
tolos que não querem voar
nem sabem que é a própria razão de existir.
.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Onde?


Onde riscas o céu como
brilho do seu onde olhas
tanto mel quando bebes
um cometa que sabe
aluar porque sonhas
mar onde raios estás
como luz onde breu
como fogo onde apagas
todo chão onde voas
feito som onde sou
quando estás?

sexta-feira, 16 de março de 2012

Afeto de armar


Que alguém (inclusive eu?) poderia musicar.  .
 
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Em que hora nós deixamos de sentir
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Esse chão que nossos pés nunca pisaram
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Voando assim por entre sonhos
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Remansos
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Que o tempo foi plantando pelas nuvens
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Tontas
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Como a vida a nossos pés?

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Por que espero que entendas o que sinto
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Me arrastando em teu deserto de palavras
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Catando e ouvindo tuas conchas
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Em vão
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Me prendendo e cantando tuas fugas
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Longas
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Infinitas ao eterno?

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Como esperas que eu entenda o que sentes
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Se me apanhas nesse afeto de armar
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Quebra-caba de assombros
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . E brancos
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Indo em frente e me deixando em teus refúgios
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Onde
.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . Só se abriga o que não és? 

domingo, 11 de março de 2012

Dono


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Para a mulher que me quiser musicar e cantar

. . . . . . . . . . . . . . .  Se eu mentir
. . . . . . . . . . . . . . .  Acredita em mim
. . . . . . . . . . . . . . .  Estarei sendo sincera
. . . . . . . . . . . . . . .  Tudo
. . . . . . . . . . . . . ..   Que eu sonho inventar
. . . . . . . . . . . . . . .  Pra nós dois será assim:
. . . . . . . . . . . . . . .  A verdade que esperas
. . . . . . . . . . . . . . .  Dono
. . . . . . . . . . . . . . .  Desse avesso amor que sinto.

. . . . . . . . . . . . . . .  Se eu fingir
. . . . . . . . . . . . . . .  Que não tô a fim
. . . . . . . . . . . . . . .  Vem e toma o que quiseres
. . . . . . . . . . . . . . .  Mudo
. . . . . . . . . . . . . . .  Como esse teu olhar
. . . . . . . . . . . . . . .  De me ver além de mim
. . . . . . . . . . . . . . .  E acalmar meus infernos
. . . . . . . . . . . . . . .  Dono
. . . . . . . . . . . . . . .  Desse falso amor que finjo.
 

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Era mesmo você?



Era mesmo você que vinha vindo
em minha direção, naquela tarde
de maio, quando perdi a direção?

Eram seus os olhos que me viam
caminhar no instante em que perdi
a passada ao me perder de vista?

Quanto do que senti por você
tão intensamente aquele dia
é hoje, na memória esgarçada,

o que era você ou o que sou eu?
 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Universo



Eram dois
apenas dois
mas se tornavam mil,
milhões de sensações
intensas, sublimes,
cada vez que eu os tocava
com as mãos,
assim como cada um deles
me descortinava o infinito
se eu o tinha quase todo na boca.

Eram isso
(dois versos
universo)
os delicados
seios seus.
.
Catei a imagem no blog da minha leitora número 1, Tânia Contreiras, que a usou há meses para ilustrar uma bela crônica sobre o romance Viagem aos Seios de Duília, de Aníbal Machado, livro inesquecível para mim também.


sábado, 21 de janeiro de 2012

De bicicleta

 
Enquanto tu descias ruas
e avenidas sem horizontes
para mim, como tanto beco
que lhe trouxe meu caminhar,

não pude ver a bicicleta
em que seguias, soberana,
como num trono pedalável
ante o qual eu só existisse

de joelhos, de mãos e de cara
no chão que tentei ser na vida
por ti criada para seguirmos
até muito além do horizonte.

E nenhuma vez pedalaste
pelos caminhos que aprendi,
a me negar que rumo fosse
qualquer rumo já conhecido.