Corujas e morcegos

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Hacais hediondos

.



I
Pegue como seu
o que parece ser de outro
que nunca foi deus

II
Raio letal quebrou
a rotina sem retina
do menino cego

III
O frio dá vontade
de ressuscitar os mortos
para que caiam duros

IV
Sim, uma das sílabas
da palavra querosene
atacou-me o fígado

V
Eu, prato e colher
você, faca e guardanapo
se me cortar, limpe

VI
Uma cambalhota
fez o palhaço virar
verme, chão adentro

VII
Sem hipocondria
só coleciono moléstias
mortais para os outros

VIII
Nessa tua feiura
tem um tanto de beleza
que alguém te roubou

IX
Que tal se caçares
borboletas na paisagem
do abismo em que cais?

X
Guarda a grana aqui
nesta mão que vai te dar
o mais grato adeus

 

sábado, 5 de outubro de 2013

La guitarra


POEMA DE LA SIGUIRIYA GITANA

Garcia Lorca  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

Empieza el llanto
de la guitarra.
Se rompen las copas
de la madrugada.
Empieza el llanto
de la guitarra.
Es inútil callarla.
Es impossible
callarla.
Llora monótona
como llora el água,
como llora el viento
sobre la nevada.
Es impossible
callarla.
Llora por cosas
lejanas.
Arena del Sur calliente
que pide camelias blancas.
Llora flecha sin blanco,
la tarde sin mañana,
y el primer pájaro muerto
sobre la rama.
Oh, guitarra!
Corazón malherido
por cinco espadas.

sábado, 14 de setembro de 2013

O cheiro da dor



Morrer de amor
morrerei ainda
(disposto, estou)
muitas outras vezes
tantas ou bem mais
do que há séculos
venho morrendo

Não me doi a dor
da não correspondência
Não me dói a dor
de antever o fracasso
Não me doi a dor
lancinante da perda

Minhas mortes
de amor não doem
nem pela exposição
de tanto cadáver meu
aos olhos do mundo

O que me dói – e muito
é esse cheiro pútrido
que eles exalam hoje
e decerto ainda (aposto)
além, muito além
da derradeira morte

terça-feira, 16 de julho de 2013

Uma flor apenas



Gosto das flores solitárias

as que reinam nos horizontes das colinas
as que acendem e ascendem os baixios
as que implodem as cavernas e grotões
as que inflamam como vulcões as montanhas.

Quero assim, para que mais?
quem precisa de canteiros e buquês?
todas as luzes e fragrâncias da alma
estão contidas na misteriosa incontinência

de um único naipe de pétalas.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Cegos




Os meus sonhos no teu sono
tuas vísceras no meu medo
nosso ímpeto à nossa espera

Tua raiva em meus gritos
meus silêncios em teu tédio
nosso adeus à nossa volta

Todo desejo pelo avesso
cada querer no sem querer
o encontro em nossas fugas

Cegos que fingem não ver.



terça-feira, 16 de abril de 2013

Concepção




                   Para Tânia Contreiras e Leonardo B. 

Com quantas contas me conta
teu rosário de dor e rosas,
à minha espera em silente cio?

Por que ardores me chamas
das profundezas que afloram
oceânicos vulcões de sangue?

A que final me destinas
em teu ciclo de incêndios
para os quais me concebeste?

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Na ponta do lápis




Antônio Rebouças Falcão

Como a noite vai
E mais em mar nenhum 
Sou
Para quem qualquer for
Tenho o de mim
O que de mim sou
Ou o que restou de mim
Assim sou
Uma espécie de começo 
Do fim.

Blog do autor: Dilema Paulistano

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Uma mulher

.



Uma mulher que seja
a voz e o sentido do mar
revolto que me envolve,
mesmo e principalmente
quando eu estiver só.

Uma mulher que saiba
cerzir a minha alma rota
com fogos de arrepio;
que creia, sem dúvidas,
na minha descrença;
que espere, que propicie
luz à minha desesperança.

Uma mulher sem adjetivos
para o que sinto e sou:
que me queira por inteiro,
sem jamais me comparar
a ninguém – nem mesmo
e mormente àquele que,
ontem ou até um segundo atrás,
me foi.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Ela, às vezes eu

.


I

As horas, minha sombra
sempre diz com precisão.
Mas ouvidos só lhe dou
quando a piso por inteiro:
ao meio-dia em ponto.


II

Sombra de mim, és sobra
do outro que sempre sou
a cada passo que dou
no que de mim sossobra.


III

Fotografam-me de pé
e revelam-me no chão.
Enquadram-me sentado,
na foto eis-me no chão.
Deitado, sim, é que surjo
lógico, na horizontal,
embora justo embaixo

de mim que lá não estou.

Mas no espelho, a sós
comigo, sou onde estou,
ainda que seja ainda
minha maldita sombra
que no aço se estampa.

Somente em radiografias
saio sempre bem: 
é quando revela-se
o exterior do meu próprio eu
livre dessa sombria

víscera que me segue, à espera 
de outros corpos meus
para invadir e comandar.
 

terça-feira, 26 de junho de 2012

pássaros para sempre

  
. . . . . . . . . . . . meus pés descalços
. . . . . . . . . . . . já não rejeitam a lama frígida
. . . . . . . . . . . . que os enrugará cada dia mais
. . . . . . . . . . . . nem as pedras que os esfolarão
. . . . . . . . . . . . até que deles nada mais reste
. . . . . . . . . . . . no asfalto ardente que fritará suas almas (
. . . . . . . . . . . . sim, há pés com alma)

. . . . . . . . . . . . meus pés descalços apenas sonham
. . . . . . . . . . . . me sonhar de cabeça para baixo
. . . . . . . . . . . . eles nas nuvens, altíssimas nuvens
. . . . . . . . . . . . calçando sapatos que os ventos
. . . . . . . . . . . . para espantar a solidão tricotaram
. . . . . . . . . . . . com penas perdidas pelas aves migratórias,
. . . . . . . . . . . . generosas, distraídas, desapegadas
. . . . . . . . . . . . de toda dor que ficou para trás, bem para trás
. . . . . . . . . . . . de cada mínima pluma que um dia
. . . . . . . . . . . . haverá de passar, empassarada
. . . . . . . . . . . . no compasso compassivo dos passos
. . . . . . . . . . . . de meus pés, meros passageiros, alvos de leveza
. . . . . . . . . . . . pássaros para sempre
. . . . . . . . . . . . a teus pés, esses teus pés
. . . . . . . . . . . . caminhantes de aerovias no azul
. . . . . . . . . . . . infinito enquanto voas a meu lado